Foto: Reprodução
O objetivo dasferramentas é tornar mais acessíveis métodos sofisticados de avaliação em saúde mental, principalmente em contextos onde, por falta de recursos, o diagnóstico de transtornos mentais ainda é restrito.
Duas novas ferramentas digitais desenvolvidas por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), em parceria com outras universidades gaúchas e instituições de São Paulo, podem facilitar o rastreamento de sintomas depressivos e estimar probabilidades de transtornos mentais na população brasileira. Chamadas de calculadoras, uma delas mede níveis de sintomas depressivos, e a outra, calcula a probabilidade de diagnósticos psiquiátricos entre jovens urbanos.
+ Receba as principais notícias de Santa Maria e região no seu WhatsApp
Entre os responsáveis está o psiquiatra e professor e chefe do Departamento de Neuropsiquiatria da UFSM, Maurício Scopel Hoffmann, que coordena o time que criou as ferramentas. Todos eles são membros do Mental Health Epidemiology Group, time no qual é coordenador. Hoffmann acredita que elas podem apoiar triagens clínicas em escolas, postos de saúde e serviços privados, e também ser uma opção de ferramenta para a rede pública.
Calculadora de depressão
A "calculadora da depressão", lançada em 15 de maio de 2024 a partir do trabalho de João Villanova do Amaral, mestrando de Hoffmann da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), veio da necessidade de melhorar a interpretação do PHQ-9, que é o questionário mais usado no mundo para rastrear sintomas depressivos.
— Observamos que a simples soma dos pontos não refletia tão bem a complexidade dos sintomas. Há itens mais graves, como pensamentos de morte, que precisam ter mais peso.
Com base em estudos envolvendo mais de 90 mil participantes, os pesquisadores perceberam que o modelo tradicional não capturava nuances importantes. A partir disso, decidiram transformar a evidência científica em um instrumento simples e acessível para o dia a dia.
O resultado é uma calculadora que funciona como um “termômetro” dos sintomas, e permite ao usuário comparar a pontuação com a média da população brasileira.
Como funciona
O usuário responde às nove questões do PHQ-9, que avaliam fatores como energia, sono, apetite, motivação e presença de pensamentos negativos. As opções são: "nenhuma vez" "vários dias", "mais metade dos dias" e "quase todos os dias". A partir daí, a pontuação passa por um modelo estatístico moderno (IRT), que dá mais peso a sintomas mais relevantes e ajusta os cálculos de acordo com sexo e faixa etária.
A equipe desenvolveu 28 modelos diferentes, segmentados por faixa etária (dos 15 anos aos 80+) e por gênero. O resultado final aparece como um T-score, medida usada em pesquisas de saúde para comparar a pessoa à distribuição nacional:
- 50 = está na média do Brasil
- 70 = está entre os 3% mais altos do país em termos de sintomas
Essa precisão permite uma avaliação muito mais sensível do que a soma simples do questionário.
O que os dados revelam sobre a saúde mental dos brasileiros
A ferramenta se baseia na Pesquisa Nacional de Saúde (IBGE) de 2019, que reuniu respostas de 90.846 brasileiros e mostrou que:
- maioria tem poucos sintomas, mas há uma parcela expressiva com níveis moderados ou graves.
- mulheres e jovens apresentam mais sintomas, embora a diferença entre grupos seja pequena
- Um resultado equivalente a PHQ-9 ≥ 16 pontos coloca a pessoa acima do percentil 97 (casos mais graves)
Isso significa que cerca de 3% da população adulta, aproximadamente 5 milhões de pessoas, podem estar nessa faixa.
Quem pode usar
Qualquer pessoa pode usar a ferramenta: profissionais, pacientes, estudantes ou público geral. Ela também pode, inclusive, auxiliar serviços de saúde.
— Ela não substitui um diagnóstico, mas pode ser usada como triagem e para monitorar sintomas ao longo do tempo - afirma Hoffmann.
Um recurso importante é a possibilidade de enviar automaticamente o resultado para o profissional de confiança do usuário.
Quando buscar ajuda profissional?
- T-score acima de 65 ou 70
- Prejuízo significativo na rotina
- Desesperança, perda intensa de energia
- Qualquer pensamento de morte, mesmo que eventual
Agora, só para os jovens

Se a primeira calculadora é voltada ao público geral, a segunda tem foco específico: adolescentes e jovens adultos, especialmente no contexto urbano brasileiro. Inédita no Brasil e idealizada por Gabriele dos Santos Jobim, estudante de medicina da UFSM e aluna de iniciação científica de Hoffman, a calculadora foi lançada em 3 de fevereiro de 2025, na tentativa de interpretar melhor o SMFQ (Short Mood and Feelings Questionnaire), que é um questionário usado para rastrear sintomas de depressão em adolescentes e jovens adultos. Apesar de ser muito usado, ele ainda se baseia em uma soma simples de pontos, o que deixa muitas questões relacionadas ao risco real de adoecimento mental de fora.
Hoffmann conta que a equipe utilizou dados do Brazilian High-Risk Cohort for Mental Health Conditions (BHRC), pesquisa de longo prazo com jovens brasileiros, e decidiu criar um instrumento que traduzisse toda essa base científica em algo acessível.
Como funciona
A calculadora utiliza as respostas às 13 questões do SMFQ, que investigam sintomas como tristeza, falta de prazer, cansaço, baixa autoestima e pensamentos negativos.
Também usa um modelo estatístico como metodologia, e as respostas ligadas à desesperança ou pior funcionamento, por exemplo, têm impacto maior.
O resultado é convertido para uma escala padronizada, em que 50 é a média da população e pontuações entre 60 e 70 indicam sintomas elevados. Não é um diagnóstico, mas estima níveis de sintomas e probabilidade de transtornos.
Com base no T-score, a calculadora estima a chance de: depressão maior, ansiedade generalizada (TAG), fobia social, pânico, agorafobia (um tipo de transtorno de ansiedade), transtorno do estresse pós-traumático e uma categoria geral chamada “qualquer condição mental”.
— Um diferencial importante é que ela permite enviar automaticamente o resultado por e-mail para um profissional de confiança, facilitando encaminhamento, continuidade de cuidado e integração entre o app e o sistema de saúde — diz Hoffmann.
Quem pode usar
O instrumento foi pensado para ser uma ferramenta para usado por jovens e suas famílias, psicólogos e psiquiatras. De fácil acesso em computadores, celulares e tablet, também pode auxiliar políticas públicas e triagens escolares, desde que acompanhada da orientação profissional adequada.
Como interpretar o resultado e quando procurar ajuda
É fundamental buscar avaliação profissional quando:
- O T-score fica acima de 60–65
- Os sintomas afetam escola, convivência familiar ou vida social
- Há persistência por duas semanas ou mais
- Há qualquer sinal de desesperança intensa ou autoagressão
Com base nos dados analisados, aproximadamente 3% dos jovens apresentam escores tão elevados que exigem atendimento clínico urgente.
Próximos passo
As duas calculadoras representam apenas a primeira etapa de um projeto que pretende ampliar o uso desse tipo de recurso. A equipe responsável planeja avançar em duas frentes principais: o desenvolvimento de novas ferramentas e a expansão da análise estatística para prever desfechos concretos de saúde.
— O próximo passo é ligar esses níveis de sintomas a desfechos clínicos importantes, como: risco de mortalidade, risco de internação e risco de suicídio. Esses estudos vão permitir entender melhor o quanto cada faixa de T-score realmente indica risco para a vida real. Além disso, queremos expandir o modelo para outras condições, como ansiedade e funcionamento diário, criando um conjunto integrado de ferramentas abertas para o Brasil.
De acordo com o professor, as calculadoras podem ser usadas tanto por cidadãos quanto por equipes de saúde, inclusive em contextos de triagem:
— Ambas com potencial de uso em serviço público e privado. Embora não substitua avaliação profissional, que realmente dá o diagnóstico, elas podem sim ser usadas como ferramenta de triagem, ajudando a padronizar e monitorar sintomas ao longo do tempo. É mais um recurso de saúde, assim como um aparelho de medir pressão ou glicose - avalia Hoffmann.
Cism
O Cism é um Centro de Pesquisa Aplicada financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), integrado ao Departamento de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), e foi responsável pela coleta dos dados. A coleta dos dados que sustentam os modelos estatísticos foi conduzida pela rede nacional de pesquisadores do Centro.
Além da UFSM, participaram, em ambas as pesquisas, profissionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Child Mind Institute (EUA), ProDAH/HCPA e outras instituições brasileiras e internacionais.